quinta-feira, 25 de junho de 2020

(Des)Romance


Ela nem era a mais bonita; nunca a olharia duas vezes, se, sem se conhecerem, se cruzassem na rua. No entanto, depois dos seus mundos se cruzarem, o seu olhar atento e perspicaz convidava a grandes conversas. Aquela mulher sabia escutar; o pensar de um era o pensar do outro e, quando completava as suas frases, fazia-o com a palavra exata ou a gêmea da que ele iria escolher. 
Tinham ambos os mesmos atores preferidos, era comum o seu prato favorito.
Quando se encontravam, a cumplicidade instalava-se entre eles e os silêncios não faziam doer, antes amalgamavam aqueles dois seres e só eles percebiam.
Ao fim de tantos anos de vida, até parecia que tinham nascido para se encontrarem neste mundo!
Só que não. Aquela era a mulher de um outro homem e tinham os filhos que não eram os seus. 
Vida tão estranha...

terça-feira, 23 de junho de 2020

Adeus


Nesta última aula síncrona (seja lá o que isso for...), despedi-me dos meus alunos de há 3 anos.
Não houve abraços, nem beijinhos, apenas falei, falei... Chorei, também. Este malvado vírus, que eleva as emoções à flor da pele! Chorei pelos meninos que conheci no 7.º ano e pelos jovens que deixo, 3 anos depois, cuja maioria não ligou a câmara a meu pedido, nesta despedida tão estranha e intensa. Disse-lhes, sobretudo, que focaria as minhas recordações nos alunos pré-pandemia, que são muito diferentes, alguns são mesmo diametralmente opostos destes miúdos desapegados, desempenhados, preguiçosos e desorganizados.
Iremos às nossas vidas. Bem ou mal, fizemos parte dos mundos uns dos outros. 
Espero que, daqui por uns anos, sorriam quando se lembrarem das aulas de português. Eu sei que irei fazê-lo quando os arrumar aqui, ajeitadinhos na gaveta das lembranças, no meu coração.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Reflexões sobre luz

Entre tantas e tantas coisas que há na terra, quando vejo a luz da lua, apago qualquer escuridão.
Só que a luz da lua não é da terra; é do céu.
Fecho os olhos, penso na luz da lua, que é de prata, e constato que o céu azula tudo menos o sol. Então, se calhar, a luz da lua é um azul que a escuridão prateou...

quarta-feira, 17 de junho de 2020

Nada do que é seria

E se eu, de repente, abrisse a porta de casa, escancarasse o portão e me fizesse à estrada?
Pararia só quando avistasse o mar; não o meu mar, mas o mar dos outros, o mar revolto, forte, que rasa as praias cobertas de pedras e cercadas de rochas.
Deixaria que as águas acariciassem os meus pés, as minhas pernas e me amassem, tal como eu as amaria..
Nada do que é seria e o céu estaria límpido só para mim.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Descobrimento

Uma das poucas coisas boas da pandemia foi esta descoberta. E olhem que eu sou muito seletiva!...

Chão(s)



Saboreou aquelas ruas e sorveu portas e janelas da sua infância, devagarinho e carinhosamente. Detalhou os olhos nos vasos de flores, nas frestas das janelas que desnudavam cortinas discretas, nas vozes que planavam pelas sombras dos beirais.
Era a sua terra! O pedaço de chão que a viu nascer há já muito tempo...
Metade dos seus, aventaram-lhes ao solo os seus ossos, por lá; a outra metade foi para outra terra, com outras gentes, mas os mesmos céus.
Escolheu viver no meio, nem num nem noutro chão. Aqui, onde vive, sente o aconchego do lar; cada vez mais, a sua terra é só o lugar onde nasceu. Ou então não, porque aquele amor que sai do seu peito cada vez que lá vai, não a deixa não voltar.

terça-feira, 9 de junho de 2020

P-A-L-A-V-R-A-S


Gosto de palavras.
Prefiro as pequeninas, podem ser ou não redondinhas, como "colo", "lua", "sol", "mimo", "mar".
Também amo "fogo", "brisa", "raio", que ondulam sempre que as busco.
E há palavras médias, que sendo nem grandes, nem pequenas me preenchem e afagam: "abraço", "sorriso", "ternura", "toque", "memória"...
São só palavras. Ou não.

Sim, mas não

Dizem que, sonhar com alguém que amamos e que já morreu, nos dá a confirmação de que esses entes queridos são anjos no céu a velarem por nós. O meu agnosticismo fecha-me essa porta com a imagem de um diabinho e de um anjo, em cada um dos meus ombros a contradizerem-se para  me incentivarem a acreditar no que cada um defende. Curiosamente, é o diabo que me tenta a esta crendice. O meu anjo da guarda é racional e confirma-me que tudo isto é treta...
Também me disseram que, quando sonhamos com alguém que vive ainda, temos essa pessoa a pensar em nós com frequência. Diz que são as energias.... 
Perguntei aos habitantes dos meus ombros, os tais de cores e opiniões diferentes. Neste assunto, já temos o amiguinho das alturas a confirmar a coisa. 
Ora, se nem os diabos e nem os anjos de cada um se entendem, como podemos nós, simples mortais e, ainda para mais, agnósticos, acreditar, tomar uma decisão que nos apazigúe?

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Daqui


Daqui da minha janela, vejo o bailado das folhas, nos ramos das árvores. Vejo pássaros a planar, contrastando com as nuvens no céu. Lá mais ao longe, as flores alaranjadas pintalgam as romãzeira; enfeitam o quintal antes de se tornarem frutos, daqui por alguns meses. 
Ainda há limões nos limoeiros, amarelinhos e de vários tamanhos, sorrindo o seu azedume.
Daqui da minha janela, o mundo desconhece o que é estar confinado.